Estou novamente na cidade de Angra para recordar os tempos de menino e moço, mal entrado na adolescência, a viver num grupo de moços de várias idades, saídos dos mais diversos meios e, por vezes, com incorrectos tratos de civilidade. Talvez por isso um dos compêndios que mandaram adquirir para a respectiva aula, intitulava-se simplesmente EDUCAÇÃO. Mas deixo esse recordar algo saudoso para trás, porque outras vivências há que aqui trazer.
Angra tinha, ao tempo, três estabelecimentos de ensino secundário: o Liceu Jerónimo Emiliano de Andrade, a Escola Comercial e Industrial Madeira Pinto e o Seminário Episcopal, frequentados por umas centenas de alunos. Isso bastava para dar à cidade um movimento álacre e jovial. Os estudantes do liceu, principalmente, paravam pelo Jardim Público que ficava um pouco abaixo do Liceu, então instalado no antigo convento de São Francisco, ocupando as salas do antigo Seminário. Este, depois de alguns anos andar a funcionar, clandestinamente, em casas particulares com aulas nas residências dos respectivos professores, havia adquirido o palácio do Barão do Ramalho, onde passaram a funcionar as aulas, salas de estudo e refeitório.
Os dormitórios eram fora: numa casa do Pátio do Conde, em Santa Luzia, no segundo andar da casa das Senhoras Menezes (hoje casa das obras católicas) e na sala onde, actualmente, se encontra instalado o Tesouro da Sé. Já então existia um novo edifício na rua do Rego, que servia de dormitório para um grupo de internos. Era a “Camarata do Dr. Couto”, pois foi esse Senhor, quando vice-reitor, que teve a iniciativa da sua construção.
Mas era ver dois grupos de alunos, diariamente, seguir pela rua da Esperança, atravessar a rua da Sé e dirigirem-se aos respectivos dormitórios ou deles sair todos os dias às 5,30H da manhã. Aos domingos, porque havia cinema no Teatro Angrense, o percurso à noite era alterado: descia-se a rua do Marquês até à rua da Sé e por ela se seguia, espreitando as montras iluminadas dos estabelecimentos comerciais, o que não deixava de ser agradável e até uma variante à rotina da semana.
E já que trouxe, aqui, o Seminário - que no presente ano comemora cento e cinquenta anos de existência, há que lembrar que os alunos só saíam três vezes por semana a passeio, depois do jantar – actualmente seria o almoço. O rapazio e até as meninas às janelas, quando viam os alunos do seminário, gritavam: Olha os estorninhos! Amanhã temos chuva!
Naturalmente, que eram outros tempos. Hoje seria diferente, até porque os hábitos talares desapareceram e, os poucos alunos do Seminário, nem andam em filas como meninas colegiais.
Como instituto de ensino secundário e superior, o Seminário foi modelar.
Um elenco de professores, a quase totalidade formada na Universidade Gregoriana, em Roma, constituía o corpo docente, proporcionando à generalidade dos alunos uma elevada formação cultural. Verdadeira Universidade, pode afirmar-se.
Atrás, fiz alusão à casa do Pátio do Conde. No final do ano lectivo e, em certo ano, aí por 1928, realizou-se uma tourada à corda em S. João de Deus. Creio que é tradicional. O touro, naturalmente, passava no Pátio do Conde. Um grupo de seminaristas resolveu ir ver a tourada, coisa desconhecida para alguns. Empoleiraram-se num dos dragoeiros que lá existia. (Devem ter desaparecido com a construção do Posto Meteorológico.) Quando o bicho ia a passar a árvore, de fraca resistência, cedeu com o peso. Resultado: Contusões e braços desmentidos. E o pior é que os exames escolares estavam à porta…
Na cidade, havia um grupo de indivíduos, alguns ainda adolescentes, a fazer vendas de artigos dos mais variados géneros: amendoins, milho torrado, alfenins, cajadinhas, e outros mais. Alguns, não por conta própria mas de outrem… No entanto, tornou-se uma figura carismática o “Tio quentinho” pois percorria o centro da cidade apregoando:”Ó quintinho, torradinho!”. E não faltavam os engraxadores na Praça Velha e até o João dos Ovos, sempre de marrafa e trazendo o balde de lavagens, pois era o seu serviço diário… Mas dessas figuras típicas melhor nos fala Augusto Gomes no seu excelente trabalho “Filósofos da rua”.
E de Angra quanto mais haveria para dizer! Fica para depois…
*Como acima se diz, o Seminário de Angra celebra, no corrente ano, um século e meio de existência. Presto homenagem aos professores que nele serviram e que o tornaram num autêntico estabelecimento de ensino superior.
Voltar para Crónicas e Artigos |